Uma reflexão sobre como a normalidade escapa pelas frestas do hábito e se transforma em ruína — sem que ninguém perceba.
Não começa com um estrondo, mas com um sussurro — aquele incômodo leve que se veste de piada, que se apresenta como exceção inofensiva, que se ergue num gesto torto mascarado de leveza. Com o tempo, aquilo que antes provocava espanto já não desperta indignação; arranca apenas um riso nervoso, quando muito. Consciências coletivas não se rompem de uma só vez: cedem aos poucos, como madeira antiga que apodrece por dentro, sem alarde, sem tragédia, sem aviso. E justamente por não fazer ruído, não encontra resistência.
O senso de normalidade — essa estrutura tão delicada quanto invisível — é também uma das mais frágeis. Ele não se sustenta em leis, mas em limites; não se protege por palavras, mas por valores silenciosos. E quando esses limites se esticam demais, deixam de retornar ao seu lugar. Basta observar o mundo com alguma calma: não são apenas costumes que mudam, mas os próprios fundamentos, os marcos de referência, o sentido do olhar. O que antes exigia disciplina passa a ser denunciado como opressão; aquilo que um dia foi visto como belo é reduzido a elitismo. O feio se impõe desde que faça barulho; o vazio é aplaudido desde que corra rápido.
Aos poucos, palavras que antes despertavam respeito passam a provocar desconforto. Esforçar-se já não soa nobre, mas suspeito, como se o mérito fosse apenas privilégio fantasiado de virtude. A profundidade, que pede tempo e silêncio, é percebida como arrogância. A virtude — essa bússola discreta dos gestos mais belos — é tachada de moralista, repressiva, ultrapassada. E para não parecer rígido, ou para não ser confundido com aqueles “atrasados”, o indivíduo faz concessões: ri do que não acha graça, aplaude o que não admira, repete o que não entende. Nessa pressa de parecer moderno, entrega justamente o que o sustentava: valores silenciosos, gestos discretos, fundamentos invisíveis que, como vigas ocultas, não aparecem na fachada, mas impedem que a casa desabe.
É nesse ponto que tudo se torna possível: o impensável vira tolerável; o tolerável, habitual; o habitual, norma. Não por imposição, mas por adesão silenciosa — como o animal que, entretido pelas luzes da gaiola, esquece que um dia foi livre. Civilizações não ruem por batalhas, mas por distrações; não desaparecem por bombas, mas por concessões diárias, pequenas, quase imperceptíveis. Um império não precisa ser invadido para cair; basta que seus próprios filhos esqueçam o que o ergueu.
O declínio se fantasia de progresso; o enfraquecimento moral veste o traje macio da empatia; a indiferença disfarça-se de tolerância. Tudo parece aceitável quando embalado pelas palavras certas. E então a própria linguagem cede: palavras perdem significado, sentimentos são manipulados, a clareza é sacrificada em nome da conveniência. Já não importa o que se quer dizer, mas o que se pode dizer — e, principalmente, o que não se deve dizer. O solo firme da realidade se dissolve; a fluidez, vendida como liberdade, transforma-se em desorientação. Os olhos perdem o norte, os ouvidos perdem referência, e o riso espalha-se como verniz barato tentando ocultar rachaduras profundas.
A verdade perde valor prático. A excelência, valor simbólico. A modéstia some; a honra é ridicularizada; a vergonha, diagnosticada; a virtude, tratada como palavra estrangeira. Nada disso é novo, mas a velocidade agora é outra — e o alcance, imenso. O grotesco chega em vídeos de trinta segundos; a deformação moral, em frases de fácil digestão; o ridículo, embalado em trilhas dançantes.
O colapso cultural não vem com sirenes; instala-se pelos silêncios. O silêncio de quem viu, mas não quis incomodar; de quem sabia, mas preferiu rir; de quem pressentiu, mas escolheu calar. Porque hoje, ousado não é quem aceita tudo; ousado é quem afirma que nem tudo deve ser aceito. E sempre se repete o mesmo enredo: começa pequeno, quase invisível, como um sussurro. Até que um dia alguém olha para trás e pergunta: “Como foi que chegamos aqui?” E a resposta vem, novamente, suave demais para ser enfrentada: chegamos aqui porque todos viram, mas poucos falaram.