Uma reflexão ampla sobre como a obsessão por metas imediatas destrói nossa capacidade de construir o futuro.
Algumas ideias são tão amplamente aceitas que ninguém ousa questionar — e, justamente por isso, tornam-se perigosas. Não porque estejam erradas em si, mas porque são aplicadas sem medida, sem reflexão, como quem insiste em usar um martelo para resolver qualquer problema, mesmo quando o problema é uma vidraça trincada que exigiria outro tipo de cuidado.
A chamada “visão de 90 dias” é uma dessas ideias. Simples, pragmática, eficiente. Nos ambientes corporativos, ela floresce como uma ferramenta robusta que permite decompor ambições em partes manejáveis. Facilita o acompanhamento de métricas, ajusta rotas, mantém equipes alinhadas e ágeis. Quando o tempo é curto e os riscos são altos, pensar em janelas trimestrais não é apenas útil — é sensato. É como conduzir um carro em estrada sinuosa com faróis potentes: eles não revelam o caminho inteiro, mas impedem que se caia na ribanceira logo à frente.
O problema não está na ferramenta — mas no fetiche. Quando essa mentalidade de curto prazo escapa dos limites da gestão e começa a orientar dimensões da vida que pedem delicadeza, profundidade e paciência, ela perde o caráter de método e se torna crença. E é justamente por parecer sensata, moderna, objetiva, que se infiltra sem resistência. É ensinada em cursos de liderança, repetida por executivos, celebrada por investidores. Ganha prestígio como quem aparece com um terno impecável e um currículo de primeira linha. Mas essa elegância esconde uma fragilidade: tomar o presente como medida absoluta da realidade é um erro profundamente corrosivo.
Viver apenas pelos próximos 90 dias é como tentar navegar o oceano encarando somente a faixa estreita de água diante do casco. A ilusão de controle se desfaz quando se percebe que a maré muda sem aviso, que o vento vira, que existem correntes invisíveis sob a superfície. O foco exclusivo no agora afia a produtividade, mas embota a sabedoria. Produz resultados, sim — mas desorganiza o sentido.
A vida, porém, não acontece em trimestres. O que verdadeiramente importa — a formação de um caráter sólido, a construção de vínculos profundos, o amadurecimento de uma vocação — exige tempo, paciência ativa, resistência à sedução da pressa.
E isso vale para além das empresas. Vale para amizades que se desfazem por pequenas impaciências. Para casamentos que se rompem não por falta de amor, mas pela incapacidade de suportar o desconforto de um ciclo ruim. Para projetos abandonados não porque eram inviáveis, mas porque não entregaram frutos na velocidade exigida pela ansiedade. Vale para promessas desfeitas não por ausência de sinceridade, mas por excesso de imediatismo emocional — como se o valor de uma decisão dependesse apenas do entusiasmo do momento.
Quando a lógica dos 90 dias se infiltra na forma de amar, de criar, de educar, de construir algo que mereça perdurar, ela nos convence de que tudo o que não oferece retorno rápido não merece investimento. Assim, desistimos antes que algo possa florescer — como quem desenterra a semente semanalmente para verificar se já germinou.
Essa mentalidade aplicada à vida gera uma existência descartável. Tudo vira teste. Tudo é provisório. Tudo pode — e deve — ser substituído se não produzir resposta imediata. E assim, aperfeiçoamos a performance enquanto perdemos o eixo. Tornamo-nos ágeis, mas vazios. Adaptáveis, mas desintegrados. Flexíveis, sim — porém a ponto de não mais sustentar aquilo que exige firmeza interior. De tão maleáveis, rompemos sob qualquer tensão que peça constância. É como se, pouco a pouco, perdêssemos o centro de gravidade — aquele ponto silencioso que mantém o corpo de pé mesmo quando o mundo gira. Perdemos a forma. E, com ela, perdemos a direção.
Mas há coisas que só florescem depois do rigor de um inverno inteiro. Certos frutos da alma pedem silêncios longos, gestos reiterados, noites de inquietação e nenhuma garantia de retorno imediato. Há valores — como fidelidade, vocação, cuidado — que simplesmente não cabem dentro de um trimestre.
A travessia que vale a pena exige fé — não no sentido religioso, mas como disposição interna para sustentar algo que ainda não se revelou por completo. A vida que tem raiz não se apressa. A vida que vale a pena não cabe em 90 dias. E é justamente por isso que exige coragem: porque os frutos mais consistentes amadurecem lentamente. Porque o que tem raiz demora. Porque o que importa, de verdade, nunca vem embalado em pacotes trimestrais de alta performance.